Originalmente publicado em 22 de setembro de 2011, no jornal FOQUE
Texto por Enoque Vieira, historiador e boêmio do Beco da Lama.
“A memória é um cabedal infinito do qual só registramos um fragmento”*
TAL qual uma primavera alongada, assim foi o acampamento Primavera sem Borboleta.
Primavera alongada porque no tempo normatizado; aquele tempo preso às normas, às regras e aos ditames daqueles que o administram; a primavera, um dos espaços temporais que divide o ano em quatro partes, estava ainda distante; na época em que aconteceu o acampamento Primavera sem Borboleta se vivia o clima do frio e chuvoso inverno que assolaria a cidade nos meses vindouros.
Mas, convenções à parte, aquele histórico dia sete de junho do sagrado ano de dois mil e onze; aqui se menciona, mesmo sem querer, mais uma convenção temporal; um grupo de pessoas, em sua imensa maioria jovens, ocupou a sede do poder legislativo municipal da cidade do Natal.
A ocupação terminou por gerar uma ruidosa repressão articulada pelos vereadores aliados da chefe do poder executivo, repressão essa que tinha, tão somente, o sentido único de blindar a prefeita Micarla de Souza.
Aquele grupo de pessoas, que naquele momento era bem pequeno; pois, naquela manhã a chuva não deu tréguas; não se intimidou com a densa enxurrada que parecia querer não parar, e organizadamente, pacificamente, ordeiramente e alegremente tomou as ruas da cidade, enchendo-as de cores, sons e alegrias; ecoando palavras de ordem, ou de desordem como afirmavam alguns, que denunciavam o deszelo da prefeitura, cantigas tais como: “quem não pula quer Micarla”, motivando tod@s a pular; ou “quem não não se molha quer Micarla”, fazendo alusão à densa enxurrada que molhava o cortejo, ou ainda, uma palavra de ordem no mínimo complicada de se cantar, que dizia: “olha a leptospirose”, criação de um companheiro que ao pisar nas poças de água, formadas nos buracos da cidade, lembrou da doença transmitida pelos ratos.
A tomada da via pública na urbe burguesa é um afronto aos que se consideram don@s da cidade**. No entanto, essas vias foram tomadas por aquela juventude, e, desde a Praça Cívica, recanto histórico da burguesia natalense, até a câmara de vereadores, o cortejo da liberdade, da ética e da justiça marchou fluentemente pela Rua Trairi, Avenida Deodoro da Fônseca, Rua Apodi, Avenida Rio Branco, beco do Banco do Brasil, Avenida Junqueira Aires, Rua Ulisses Caldas, mais uma vez a Deodoro e por fim a Rua jundiai onde fica o edifício da câmara de vereadores.Todo esse percurso foi vencido debaixo de muita chuva, de ações hostis vindas de gente contratada e paga para apedrejar aqueles que lutavam contra os desmandos e desgovernos da administração municipal, e, acima de tudo, debaixo de muita alegria, irreverência, espírito criativo e desejo de viver em uma cidade aonde tod@s; sem distinção de cor, raça, credo, gênero ou filiação política; pudessem vivê-la em toda a sua plenitude.
O desejo de retomar a cidade para o seu povo, arrancá-la das garras daqueles que dela se apropriaram, e a crença de que, no futuro, a nossa cidade não mais estará sob as ordens de Micarla de Souza e seu exército de desmandos, fizeram com que aqueles atrevidos jovens decidissem acampar na câmara e passasse a exigir a instalação de uma Comissão Especial de Investigação que tivesse como fim um relatório isento das influências funestas do executivo municipal.
Aquela manhã chuvosa, de uma convencional terça-feira, não foi comum para aquele grupo, foi um dia explosivo, de uma explosão lenta e, por essência, gradual, cumulativa e, no seu fim, vitoriosa.
O acampamento teve início com uma pequena barraca azul que foi chantada em pleno pátio interno do belo edifício do legislativo municipal, pontapé inicial que culminaria com mais de trinta barracas armadas e ocupadas por mais de cem acampados.
A Câmara de Vereadores de Natal, internamente, se assemelha a um grande teatro; e foi nesse ambiente que por onze dias o agrupamento de jovens se avolumou, armando barracas de coloridos matizes, organizando ruas e bairros, expondo símbolos e construindo um espaço público e coletivo onde eram realizadas atividades lúdico-recreativas e, principalmente, plenárias públicas, que eram denominadas de audiências populares.
As decisões, tomadas coletivamente depois de exaustivos debates, fizeram do acampamento Primavera sem Borboleta um mundo particular, uma experiência política única, uma vivência humana tal que viria a marcar, feito tatuagem, os corações e as mentes daquelas pessoas.
O lugar, o pátio interno da câmara de vereadores, que, como já foi mencionado, tem a aparência de um teatro, foi palco de ações políticas, artísticas e culturais que marcariam a história da cidade do Natal. Ações essas protagonizadas por jovens que defendiam as mais diferentes linhas de pensamento, mas que tinham como elo principal a luta contra o desgoverno da prefeita e de seus incompetentes assessores.
Os primeiros dias foram tempos de tensão, as tentativas de marginalizar o movimento, feitas por Micarla de Souza e seu exécito, motivaram no coletivo uma organização ainda mais coesa, criando laços de confiança e respeito que perduraram durante todo o período da ocupação do prédio.
Vencida a tensão, o pátio da Câmara de Vereadores de Natal tornou-se o locus de vivência de todo aquele coletivo; que, ciente da importância daquela ação, deu início a um estilo de convivência onde a solidariedade, a fraternidade e o amor eram vividos em toda a sua essência. Vivência essa, que permitia com que o cansaço que abatia os corpos tensos fosse diminuído pelo carinho coletivo e pelos abraços e sorrisos que partiam de tod@s e eram compartilhados por tod@s em todos os momentos.
Alegres eram as partidas de peteca, quando, em círculo, ao centro do pátio, jogando a peteca para o alto, em revezamento, contava-se até o sétimo lance para então, numa ação enérgica, lançar vertiginosamente em direção à pessoa mais desatenta o pequeno objeto, que ao alcançá-la permitia com que, tal pessoa, aguçasse sua atenção e retomasse o seu vigor.
Presença marcante fez o coletivo do Pau e Lata, grupo musical, percussivo-político, que, tirando música de instrumentos pouco convencionais como tambores de plástico e latas, deu o tom musical do acampamento, sonorizando estrondosamente o ambiente com o intuíto de expulsar a famigerada borboleta que se aboletou, inadvertidamente, no centro do poder municipal. As tocadas percussivas do Pau e Lata, organizadas sempre em círculos, ecoavam por todo o pátio da Câmara e, encontrando barreira nas paredes do edifício, ascendia aos céus, até alcançar os ventos cíclicos que as fizessem ecoar pela cidade, levando, em ondas magnéticas, um sonoro #FORAMICARLA.
Enquanto o som estrondoso do Pau e Lata ecoava pela cidade; no pátio da Câmara municipal o acampamento inteiro dançava freneticamente e cantava vociferamente cantigas que enalteciam a sua luta de resistência. Músicas de letras simples que permitiam a participação de tod@s na formação de um grande coral, músicas, que, quando cantadas, fazia aflorar um grande coletivo vocal capaz de fazer ecoar palavras, mas não simples palavras, e sim palavras cantadas que se revelavam com a mais intensa emoção. E, sob a batuta do maestro que regia a batucada do Pau e Lata, o coral dava início às canções, uma delas conclamava a tod@s que vinham prestar solidariedade aos acampad@s dizendo, em rítmo de ciranda e dançada em círculo, “companheiro me ajuda/ Que eu não posso andar só/ Eu sozinho ando bem/ Mas com você ando melhor”, essa letra era repetida inúmeras vezes, cantada em muitas vozes e ouvida por centenas de pessoas que se emocionavam com a força que ela evocava, vislumbrando a união e fazendo com que tod@s, de mãos dadas, cirandassem por todo o pátio.
Uma outra canção, essa de forte apelo afirmativo, cantada a cada vitória que o acampamento veio a ter, e que também falava de união e fortaleza, fazia vibrar o pátio do legislativo municipal, com pisadas fortes e ligeiras, ecoando em uníssona voz, “Pisa ligeiro/ Pisa ligeiro/ Quem não pode com a formiga/ Não assanha o formigueiro”, fazendo, nos jardins do belo edifício, surgir um imenso formigueiro humano disposto, em pleno tempo chuvoso, a carregar para as profundezas da terra o corpo inerte da maléfica borboleta.
O amanhecer no acampamento, no início muito tenso, foi com o passar dos dias se tornando manso, até alcançar a paz do acordar ao som da flauta, numa melodia matinal capaz de fazer levantar o sol para tod@s e expulsar todos os ratos da cidade.
E, se tod@s estavam em um teatro, ou em um espaço arquitetonicamente teatral, o acampamento se tornou cena, e, em cena ação, o Primavera sem Borboleta firmou-se, então, tal qual uma luta dos oprimidos contra a opressão dos poderosos, revivendo o ensinamento de Augusto Boal, convencendo-se da importância da luta e da resistência do povo contra o motor repressivo dos conservadores de plantão.
O Teatro do oprimido, tal qual concebia Boal, foi vivenciado, experimentado, aprendido, provocando n@s integrantes do acampamento o desejo de resistir a toda e qualquer opressão que, por ventura, pudesse partir d@s poderos@s.
Renovad@s pelo debate suscitado pela apresentação teatral realizada no pátio da Câmara de vereadores pelos companheir@s que participaram da oficina de Teatro do oprimido, @s acampad@s decidiram então tramar a sua luta de resistência.
A paz, que invadia o coração de tod@s, fazia fluir pensamentos que afirmavam ser o amor e as coisas simples bem maiores do que qualquer forma de opressão. Receber @s companheir@s do MST e do MLB, com flores brancas no roll de entrada do edifício do legislativo municipal, foi de uma emoção tamanha, somente comparável com o sentimento de quem estava ao lado, empunhando crisântemos brancos, chorando, sorrindo e cantando; tendo a certeza de que não estava só e que muitos companheir@s se somavam à luta contra a opressão fustigada pelo poder municipal.
Interessante foi encontrar as pessoas que participavam de numa maratona de saúde e competição que, cursando a Avenida Campos Sales, em frente ao edifício da Câmara, instigou a tod@s, a mais um momento de criação, era a hora de propor uma nova palavra de ordem que bradava de forma cômica: “Quem não corre quer Micarla”, e, como tod@s que estavam na maratona corriam no afã de atingir a faixa de chegada que estava próximo ao Atheneu norte-riograndense, tod@s que estavam na corrida, sem querer, se juntavam aos companheir@s acampad@s, que ao penetrarem na maratona corriam, carregando adereços, bradando a palavra de ordem e se divertindo com @s maratonistas que vibravam e aplaudiam @s acampad@s.
Envolver a tod@s da cidade, no mundo globalizado, tornou-se uma necessidade, e, enquanto a mídia local noticiava sobre o fato, sendo, em alguns muitos casos, complacente com @s poderos@s, a twitter cam do @xôinseto transmitia para o mundo inteiro, em tempo real, todo o acontecimento. Fiel ao conceito de mídia independente e classista, o twitter @xôinseto anunciava, para todos os cantos, as ações e emoções de tod@s acampad@s. Foram horas e horas de transmissão ininterrupta, captando a essência da luta de resistência, do modelo de organização popular do movimento, realçando falas, enaltecendo palavras de ordem que afirmavam a firmeza de resistir, e fazendo ecoar vozes cansadas em gritos roucos que diziam: “até que tudo cesse, nós não cessaremos”. E ninguém cessou.
Apesar da leitura tosca da mídia borboleteante, da injustiça do pleno do Tribunal de justiça do estado, de parte do mundo lá fora alheio a tudo o que estava acontecendo, a luta continuou, e teve como aliados muitos companheir@s jornalistas comprometidos com o fim da opressão, que documentaram, em escrita e em imagem, todos os momentos vividos pel@s acampad@s.
O ápice do acampamento Primavera sem Borboleta ocorreu no momento de maior tensão, quando, à espera pelo resultado da ação que transcorria no STJ, ação essa acionada pel@s companheir@s do curso de Direito da UFRN, integrantes do programa Lições de Cidadania; visto que a decisão do pleno do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte, espécie de elite do judiciário do estado, havia sido negativo para @s acampad@s; tod@s, apreensiv@s, vislumbrando uma possível invasão policial no intuito de acabar com o acampamento no edifício da Câmara de vereadores, sentaram-se ao chão, em círculos, enlaçando braços, mãos e pernas, construindo uma mandala humana com mais de cem pessoas, numa posição de defesa coletiva capaz de evitar a opressão das forças policiais, tendo na sacada, no primeiro andar do prédio, o grupo Pau e Lata que, voltado para a mandala, iria tocar o Hino Nacional Brasileiro com o intuito de impedir que os policiais avançassem contra os acampad@s.
Era dia de casa cheia, pois muita gente fora convidada pelas redes sociais para prestar solidariedade ao acampamento. E, com a resistência organizada, ao cair da noite chegou o resultado da decisão do STF. O resultado foi favorável @s acampad@s produzindo então uma grande festa no pátio do prédio da Câmara que perdurou por quase toda a noite, um gozo coletivo, um gosto de vitória sentido por todas as papilas gustativas existentes nas mentes de tod@s, e tal qual uma turba pacífica, os acampad@s dançaram ao som da batucada do Pau e Lata, cantando incansavelmente: “Pisa ligeiro/ Pisa ligeiro/ Quem não pode com a formiga/ Não assanha o formigueiro”, transformando o pátio do legislativo municipal no mais representativo formigueiro humano que aquele prédio já conheceu.
Entre luta e arte é indubitável afirmar que o acampamento Primavera sem Borboleta inaugurou uma nova forma de fazer política em Natal, extravasando o convencional, expondo a arte em favor da luta do povo e criando um vínculo de amor entre tod@s que, com certeza, o tempo, que foi testemunha, terá dificuldade de colocá-lo no esquecimento.
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*Bosi, Ecléia. Memória e sociedade, 1994.
**ROLNIK, Raquel. O que é cidade, 1988.